MARIA NO ANO LITÚRGICO.

Nas vésperas da grande festa da Solenidade de nossa padroeira, Nossa Senhora da Conceição Aparecida, proponho uma reflexão sobre a presença de Maria no Ano Litúrgico. Uma introdução ao assunto, em vista da amplitude e significação do mesmo.
O culto que a Igreja rende a Maria, a Mãe do Senhor, é um processo e um caminho do plano salvífico de Deus Pai, realizado plenamente na pessoa e obra de seu Filho, o Verbo encarnado.
De fato, a liturgia cristã, centro e ápice do culto inteiro, gira toda ela em seu torno dos mistérios da salvação e, de modo especial, em torno do Mistério Pascal. Todos os mistérios celebrados ao longo do ano litúrgico e nas diversas celebrações da Igreja estão voltados para esse grande e único centro, e auferem dele seu significado e sua força santificadora e glorificadora.
É fácil compreender, portanto, que o culto aos santos mártires e a todos os que seguiram as pegadas de Cristo tem seu fundamento no Mistério Pascal e não possui sentido sem este último. De maneira especial, a Igreja descobre o lugar de Maria dentro do plano salvífico e sua função protagonística com Cristo no mistério salvífico. Por isso, o culto litúrgico a Maria não se limita a percorrer o ano litúrgico e o calendário, mas, além disso e em primeiro lugar, almeja a presença ativa da Mãe já não tanto como objeto de culto, porém mais como colaboradora com Cristo no exercício do sacerdócio deste último. Por isso, pode-se afirmar sem temor que o culto eclesial possui uma verdadeira “dimensão mariana” em virtude do lugar singular que a Virgem ocupa no mistério de Cristo e da própria Igreja.
Por conseguinte, toda forma de culto mariano que não esteja intimamente ligada e relacionada com a celebração do Mistério Pascal corre o risco de desviar-se da natural e obrigatória referência a Cristo e à obra de salvação realizada plenamente por ele.
 Com toda certeza, não existe uma festa que celebre expressamente a participação da Virgem Maria no mistério pascal, como acontece com a solenidade da Santa Mãe de Deus, a qual celebra a participação desta última no mistério do nascimento do Senhor. Também temos de reconhecer que, ao longo da quaresma, do tríduo pascal e do tempo pascal, a presença da Virgem não é destacada como no advento e no Natal. Tomamos conhecimento, porém, por meio das perícopes bíblicas proclamadas em diversos momentos celebrativos, da presença física de Maria em acontecimentos salvíficos como a paixão e a vinda do Espírito Santo, e da memória que a Igreja, ao celebrar os acontecimentos mencionados, faz dessa presença.
A Igreja tem consciência de que, nas celebrações do mistério de Cristo e da obra salvífica, é imprescindível ter presente a exemplaridade da primeira colaboradora de Cristo Salvador. Uma ausência da memória de Maria na liturgia da Igreja significaria não apenas a ausência de uma mera evocação, mas também a omissão de um elemento de grande importância, pois ela representa um fator integrante do mistério que a Igreja celebra.
Naturalmente, essa presença de Maria na liturgia não tem a mesma eficácia nem o mesmo significado que tem a presença de Cristo, o Autor da salvação e o Mediador universal. A Igreja, sabe, porém, que Maria é a Mãe que, ao lado de Cristo, intercede junto ao Senhor e que acompanha a oração e a ação do povo de Deus no exercício do sacerdócio de Cristo. Foi por isso que o papa Paulo VI esmerou-se em apresentar Maria como “modelo da atitude espiritual com que a Igreja celebra e vive os divinos mistérios”.
O ano litúrgico, que tem sua origem, seu centro e o seu ponto constante de referência na Páscoa do Senhor, é, por sua própria essência, a celebração do mistério de Cristo e, naturalmente, a celebração da presença ativa de Maria nesse mistério. A comemoração da Virgem ao longo do ano litúrgico ratifica o laço estreito existente entre a memória da Mãe e o mistério do Filho.
Nesse itinerário celebrativo, destacam-se de maneira especial a espera e o nascimento do Salvador, que, desde tempos antigos, constituem a raiz da comemoração de Maria no ano litúrgico. Na liturgia da Igreja ocidental, a presença de Maria no mistério pascal, em sua preparação quaresmal e em seu prolongamento até Pentecostes é menos vistosa. Nas liturgias orientais há maior equilíbrio com relação a esse ponto.
A restauração do ano litúrgico e do calendário universal trouxe consigo a supressão de várias memórias da Virgem Maria e a reorientação de algumas solenidades e festas. Essa transformação, à primeira vista, poderia dar a aparência de um empobrecimento da presença da Virgem Maria no ano litúrgico. Na realidade, porém, não foi isso que aconteceu; houve, sim, um enriquecimento da memória mariana por meio do conteúdo e da qualidade dos novos textos. Está amplamente provado que o culto a Maria não realiza um caminho independente e autônomo, mas que todas as memórias de Maria fazem referência a Cristo; por isso, é necessário reencontrar, com base nos textos litúrgicos, a ligação lógica da celebração de um fato salvífico ou de um aspecto evangélico vivido por Maria, como exemplo para a Igreja e o cristão.
A Igreja, que celebra o mistério da Virgem e assume seus sentimentos na celebração litúrgica, vive, no nível sacramental e no eclesial, a máxima e mais autêntica expressão da devoção mariana, enquanto realiza a comunhão com a Virgem e com seus sentimentos. A liturgia é o centro e o cume de toda devoção mariana.
Um fator a se valorizar é a religiosidade popular, não se pode esquecer da centralidade da liturgia, tanto por seus conteúdos como pela exemplaridade de suas formas. As tradicionais celebrações da piedade popular mariana, especialmente se pensarmos no mês de maio, de tradição popular, ou no dezembro, mais relacionadas com a tradição litúrgica, motivam-nos a buscar uma relação mais próxima com as celebrações litúrgicas, ou melhor, a tentar formas de celebração do tipo celebração da Palavra de Deus, de inspiração nitidamente litúrgica.  Não esqueçamos o fato que todo mês de maio está encarnado na extraordinária riqueza do tempo pascal, o qual nos convida a contemplar Maria como a Mãe do Ressuscitado e da Igreja nascente.
Na memória e veneração de Maria convergem motivos teológicos legítimos: a cooperação de Maria na obra salvífica de Cristo e do Espírito, como humilde serva do desígnio do Pai; a exemplaridade para a Igreja, que deve inspirar-se em seus sentimentos no exercício do culto divino; a alegria de contemplar em Maria o fruto mais excelso da redenção, mas também a nova mulher, a humanidade que colaborou com o desígnio salvífico; a esperança e o consolo que oferece sua figura, glorificada ao lado do Filho, síntese de quanto a liturgia promete e oferece antecipadamente em sua dimensão escatológica.
Um grande desafio que se coloca é como articular a doutrina mariana do Concílio Vaticano II com a piedade popular (cf. SC 13). As manifestações devocionais são mais visíveis e parecem mais importantes. “São profundamente marcadas pelo olhar de quem busca na mãe proteção e auxílio nas aflições da vida, projetando sobre Maria grande poder de intercessão junto de Jesus, o poder de conseguir que a água se transforme em vinho”.
Sem negar os valores da piedade popular “variada em suas expressões e profunda em suas motivações” (DPPL, n. 183), é necessário corrigir os desvios de atribuir a Maria funções e títulos que são próprios de Cristo. Neste sentido, é importante cuidar das composições musicais e evitar certas práticas que atribuem a ela as prerrogativas de Deus. É importante ressaltar a sua condição de discípula-ouvinte da Palavra, ícone do nosso próprio caminho no seguimento de Jesus e seu lugar especial na assembleia dos redimidos.
Jaciel Dias de Andrade
Seminarista do 1° ano de Teologia
Membro da Equipe Diocesana de Liturgia da Diocese de Guanhães – MG
Referência:

CELAM. Manual de liturgia. A celebração do mistério pascal: outras expressões celebrativas do mistério pascal e a liturgia na vida da Igreja. Tradução de Herman Hebert Watzlawich. São Paulo: Paulus, v. IV, 2007.

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